Tempo | pt.1
- Alayê Imirá de Brito
- 14 de jan.
- 4 min de leitura

Carta aberta para Benilda Regina Paiva de Brito
A minha hora vai chegar, Mãe.
Sei que a Senhora também tem consciência disso e eu também sei que a Senhora lutou a vida toda para que eu aproveitasse o meu tempo da melhor forma possível. E, aqui estou. Aproveitando tanto que às vezes paro para me questionar se mereço isso tudo.
A Senhora sabe que eu mereço. Eu também sei que sim.
O que nos faz questionar esse merecimento, é que vivemos em um lugar que a nossa condição já é condicionada a algo. Por isso, questionamos o nosso tempo de felicidade, de qualidade, de amor. Já me questionei muito por ver pessoas como nós não tendo o tempo de lazer que nós tivemos.
Lembro de quando a Senhora trabalhava como professora na Prefeitura de Belo Horizonte e, como benefício para a família, eles ofereciam uma cota em um clube. Um bom clube, mas de difícil acesso. Na época eu não entendia, mas agora eu vejo que você fez essa cota para nós por dois motivos:
Para termos tempo de lazer com o nosso pai, já que vocês já tinham divorciado e, na maior parte do tempo, estávamos com você. E, é importante frisar que essa “maior parte do tempo” inclui o tempo que nem a Senhora mesmo queria estar com a gente. Quando a criança faz pirraça, ou é lida como uma criança violenta por uma diretoria racista porque não conseguem entender que nós, crianças negras estudando em escolas particulares, também tínhamos nossas particularidades e precisávamos nos expressar no meio de tanta violência vivida.
Como disse anteriormente, até as nossas condições foram condicionadas. Era impossível que eles nos vissem de outra forma. Como “seres humanos”, por exemplo. “Violenta” era a condição que eles nos liam naquele momento.
E, 2. Para ocupar o nosso tempo. Em resumo, lembro que o maior medo da Senhora era que a gente tivesse tempo ocioso. Um sábado a tarde de muito calor no bairro, em que eu estivesse com mais outros amigos com condições condicionadas como as nossas, te preocupava. Era melhor estar em um bom clube de difícil acesso para termos tempo de lazer. Mas, além disso, para termos tempo longe das condições ruins que a rua representava.
Te entendo, querida! Te entendo, do fundo do coração! Acho que eu também faria o mesmo diante dessas condições.
Mas, o que venho dizer para a Senhora é que, mesmo com todos os esforços que a Senhora fez, a minha hora vai chegar. Assim como a hora da Senhora. Assim como a hora de alguns dos meus amigos da rua e das suas amigas mais velhas já chegaram.
Viveram em condições condicionadas, mesmo que tentaram fugir disso.
Essa semana eu me peguei pensando no meu medo. Não gosto de colocar a palavra “medo” no plural porque, atualmente, um medo supera todos os outros que tenho. E, a Senhora sabe que tenho muitos.
Mas, o meu maior medo, é o que a minha hora chegue antes da hora da Senhora.
Tenho medo de não dar conta dessas condições condicionadas que a vida nos coloca e… de repente… eu me quebre e a Senhora ser responsável por me levantar, depois de todos os seus esforços para me deixar de pé desde quando aprendi a andar sem o apoio da Senhora.
Tenho medo de não ter condições de ter acesso à um tratamento de qualidade depois das alterações de exames que tive no fim do ano passado e… de repente… eu esteja acamado, e a Senhora ter que cuidar de mim depois de todos os cuidados que você já teve com a sua Mãe.
Tenho medo de não cumprir com a verdade com a família, amigos e relacionamentos e… de repente… eu seja mau falado para a Senhora, onde a Senhora sempre pediu para que falássemos a verdade.
Tenho medo de utilizar um cigarro de cannabis, mesmo não sendo letal para a minha vida, mas posso ser revistado por um policial mal-humorado e… de repente… eu acabo sendo preso e a Senhora ter que me ver naquelas condições.
E, o que mais me dói é que, mesmo eu fazendo a coisa certa, como assistimos no filme do Spike Lee que a Senhora colocou para nós assistirmos desde os meus 9 anos de idade, isso não significa que a minha hora não chegue antes da hora da Senhora.
De novo, as nossas condições foram condicionadas.
Não era para a Senhora estar comemorando 55 anos de idade com 3 casas próprias. Assim como não era para os seus 3 filhos terem diplomas universitários. Também, não era para sonharmos em possibilidades para o futuro sendo que, o nosso futuro, passa por várias condições que independem de nós. Mas, estão na mão de um policial bem-humorado, um advogado bem ouvido, ou um juiz com assessoria suficientemente imparcial para interpretar todo o caso antes de perceber que a minha cor chegou antes da acusação.
Pode ser frustrante ler isso, mas, independentemente de todos os esforços da Senhora, a minha hora pode chegar a qualquer momento. E, isso me dói porque eu sei que isso faria com que a hora da Senhora fosse antecipada também.
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